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Minha vida escolarizada: entre frestas & brechas

Salvador, 1998: rua direita do Santo Antônio Além do Carmo, nº 98. Um casal de poetas: ela paulista trabalhadora e séria. Ele carioca malandro. Sete filhos. 3 nas costas dela e 4 nos bolsos dele. Mais alguns livros, quadros, tralhas e camas quebradas. Ocupamos uma senhora casa colonial decadente com vista para a Bahia de Todos os Santos. Foi neste ano, neste espaço que tudo começou, sem pagar aluguel.


Eu, Maíra C., 14 anos, não me drogava e não me prostituía. Mas era uma rebelde com causa e com calça rasgada. Mil colares ideológicos pesavam no meu pescoço. Mil pulseiras ideológicas sustentavam-me desde o punho até o braço. Olhar fundo de quem não dormia e sonhava durante o dia. Cuspia fogo. Não dava bom dia.


Minhas idéias saíam feitas faíscas queimando meu couro cabeludo. Eu já não queria ser angelicalmente loira. Foi quando eu rompi com Xuxa. Deixei de ser princesa e virei bruxa. Eu virei ruiva. Eu virei Christiane F., eu virei Janis Joplin, eu virei Rita Lee, eu virei Laila Garin, eu virei Rebeca Matta. Eu me desvirei. Entrei de-repente no verso e saí do avesso aos berros rompendo silêncio.


Foi subindo as ladeiras de paralelepípedos que eu senti o sol arder nos meus ombros. Entre tantas casas coloridas que havia no Pelourinho me deparei com uma casa amarela. A porta estava aberta. Entrei no bambuzal perdida. Uma linda moça de afago maternal me deu a mão e não soltou mais.


Tinha encontrado minha tribo. Descobri o amor com a Tribo do Teatro. Descobri meu corpo. Descobri minha expressão. Aquela menina tímida, reprimida e sofrida, agora tinha palco, plateia, e antes mesmo de a cortina fechar, aplausos.


Durante os anos de 1998-2002 eu estive criando no CRIA – Centro de Referência Integral de Adolescentes, uma Organização Não Governamental que desde 1994 é um espaço para jovens atuarem sobre suas ideias, emoções. Um espaço para os jovens se expressarem, refletirem, criarem, rirem e chorarem. Sim, lá todos nós rimos e choramos: meninas e meninos, homens e mulheres, pais, mães, todos. Descarregamos nossos anseios, angústias. Vamos ao fundo do nosso eu. Crescer dói. Dizia-me a moça de afago maternal. Para todos nós (crias do CRIA) foi fundamental nossa instância no CRIA. A maioria de nós era economicamente pobre, historicamente desprivilegiado e socialmente desprovido de serviços públicos. Ali nós tínhamos uma formação artística. Política. Social. Emocional. Intelectual.


A formação que eu tive no CRIA eu não tive na escola. As escolas pelas quais eu passei 98% públicas e gratuitas deixavam a desejar em tudo: espaço físico, recursos humanos, financeiros, técnicos. Desde sua concepção de escola pública e gratuita a sua ação prática política. Mas, ainda bem que conheci o CRIA. Quando conheci o CRIA apreciei Salvador. Distingui várias realidades. Reconstruí minha identidade. E tive contato com várias ONGs e/ou movimentos-cooperativas-organizações-associações que atuavam em suas comunidades atendendo suas próprias necessidades. Muitos apostavam na arte, nas comunicações e nas mídias, como instrumentos-ferramentas para alcançar o objetivo.


Foi no CRIA que comecei meu processo de emancipação. O grupo teatral o qual eu participava, Tribo do Teatro com a peça Quem Descobriu o Amor? percorreu os principais teatros da cidade, inúmeras escolas públicas e algumas privadas, e diversas cidades brasileiras. Após a apresentação do espetáculo sempre debatíamos as idéias propostas na peça com o público. Este momento era de muita interação e constante reflexão, pois, a cada apresentação-debate era uma oportunidade para conhecermos outra realidade e mais a nós mesmos.


O grupo Tribo do Teatro era como uma família. Amávamo-nos, nos respeitávamos, nos conhecíamos, erámos íntimos. Sabíamos de nossas dores, amores, alegrias e putarias. Tatiane Sacramento, uma das integrantes do grupo, foi uma grande referência para mim. Ela me apresentou o movimento estudantil, o grêmio, uma vida política-estudantil. Reuníamo-nos quase todos os sábados entre vários grêmios, em sua maioria de escolas públicas, para debatermos políticas estudantis. Utilizávamos o espaço e material do CRIA para a maioria de nossas atividades. Também visitávamos várias escolas para conversar com os alunos sobre o que era um grêmio, como montar um grêmio ou mesmo um grupo artístico-cultural. Chegamos a armar um conselho de grêmios estudantis e denunciar a máfia das carteirinhas de meia-entrada das instituições estudantis secundaristas como ABES, UBES, UMES. Levávamos este debate para os jornais principais da cidade. A jornalista Liliane Reis, autora do caderno jovem Zuêra (1998-2002 Correio da Bahia) do qual eu participava como conselheira editorial abria bastante espaço no seu caderno para debater movimento estudantil em Salvador.


Dos 7 aos 18 anos estudei em escolas públicas das seguintes cidades respectivamente: Rio de Janeiro, Teresópolis, Goiânia, Salvador e Florianópolis. Minha vida escolar começou no sudeste onde passei toda a minha infância e em especial o primeiro septênio. Aos 12 anos eu e minha mãe adentramos o Brasil e fomos viver em Goiânia. Goiânia era bem diferente do Rio de Janeiro e de Teresópolis. Meu sotaque carioca me denunciava e chamava muita atenção, o que me deixava mais tímida ainda a este novo ambiente. Aos 13 anos eu subi para o nordeste aportando em Salvador, minha cidade natal a qual eu havia deixado aos 3 anos de idade. Cheguei como carioca e logo me tornei baioca. A minha interação com estas diferentes cidades me fez descobrir muitas culturas e realidades socioeconômicas. Fora dos espaços concretos: escola e casa, eu me embebi na educação abstrata, aquela educação livre e ativa que muitas vezes são ignoradas pelos espaços concretos. Toda minha adolescência foi em Salvador. Foi na rua direita do Santo Antônio Além do Carmo. Foi no CRIA. Foi no Quilombo Cecília, coletivo anarquista que funcionava no Pelourinho. Foi no ex-passo cultural em meio aos punks e hardcores. Foi no Passeio Público nas reuniões do movimento hip-hop. Foi no ICEIA, uma das maiores escolas estaduais da Bahia. Foi na porta da escola estadual Teixeira de Freitas entre metaleiros. Foi na Biblioteca Pública dos Barris. Nas salas Alexandre Robatto e Walter da Silveira. No ex-espaço Xis. No teatro Vila Velha. No teatro Castro Alves. No Porto da Barra. Nas noites do Rio Vermelho. Foi na aldeia hippie em Arembepe. Ao som do blues que esfarinha os ossos da saudade das jam session no MAM. Tudo isso em dupla, nós, as eskrotinhas.


Nos anos de 1998-2002, entre meus 14 e 18 anos, foi quando eu descobri a Bahia, a terra que eu nasci. Foi quando despertou a baiana em mim. Ainda que eu tivesse casa eu me sentia uma sem-teto. A minha casa era a rua. Era a escola. Era o CRIA. O meu passo era arrastado e teimoso. O meu som era de provocar e contestar. A minha ação era sonhar, experimentar e produzir. A minha desobediência era anárquica. Eu me impus diante das instituições: família & escola. Tanto a família quanto a escola, estavam cheios de ausências de si mesma. A repressão me obrigava a me rebelar. Curiosamente, foi nestas mesmas instituições que eu desenvolvi minha autonomia. Quanto a isso, foi de suma importância a minha vivência no CRIA. Através da arte e da comunicação eu aprendi a me expressar.


No ano de 1999, eu com 15 anos, entrei para o segundo grau (ensino médio) no colégio ICEIA no Barbalho, muito próximo a minha casa. Eu ia a pé. Eu e meu irmão-enteado Alan Mascelani, que também era do CRIA e também estudava no ICEIA, formamos um grupo de teatro junto com outros estudantes. O grupo durou pouco, mas foi muito produtiva a experiência.


Dividia meu tempo entre o CRIA e a escola. Pelas manhãs eu estava no CRIA e as tardes na escola. E as noites, nós, as eskrotinhas, perambulávamos pelo bairro confabulando ideias e planos. Mas isso é outra longa história, pulemos este secreto capítulo. Estava sempre na escola. O grupo de teatro era um motivo para eu querer estar ali. Pouco ia para s(j)ala de aula, ignorava e estava sempre brigando com os professores. Resultado: no fim do ano meu nome estava na lista de Aluna Conservada. Senti-me enlatada.


No ano seguinte, lá estava eu feito conservante no primeiro ano do segundo grau numa turma nova. Em pouco tempo a turma se entrosou: eu, Letícia de Jesus, Elane Machado, Jamile, Elton Bispo, Leonardo, Fafinha, entre outros. Tínhamos entre 14 e 16 anos. Eu era a única da turma que morava perto da escola e ia caminhando para a mesma. A maioria morava longe do Barbalho vindo de comunidades periféricas e do subúrbio: São Caetano, Paripe, Plataforma. Todos precisavam utilizar o transporte público. Sempre tínhamos aulas vagas onde aproveitávamos para conversar. E conversávamos sobre tudo: sexualidade, drogas, educação... Então a partir de nossas inquietudes formamos um grupo: GACI – Grupo de Arte, Cultura do ICEIA. Era o ano de 2000.


O GACI funcionava da seguinte forma: cada mês era dedicado a um tema (sexualidade, drogas, escola, etnia, etc.) e explorávamos este tema através de diversas linguagens. Elaborávamos um jornal mural temático. Com material reciclado, o jornal mural sempre apresentava poesias, textos, imagens, matérias de jornal, sobre o tema do mês. Além do jornal mural também tínhamos um cineclube onde sempre exibíamos vídeos seguidos de debate. Também cada mês um grupo teatral do CRIA se apresentava. Vale ressaltar que o apoio do CRIA foi fundamental e tornou muitas de nossas atividades possíveis. Inclusive o ICEIA foi sede de algumas edições do festival MIAC – Movimento de Intercâmbio Artístico Cultural Pela Cidadania que reunia diversas ONGs da Bahia.


O GACI era algo que nos motivava. Todos os dias nós estávamos na escola, de manhã e de tarde e às vezes de noite. Realmente nos dedicávamos à escola, mas pouco nos dedicávamos à sala de aula. Porém, a gente queria estar ali pra conversar, para os nossos debates calorosos. Para a nossa produção. Compartilhávamos comida, músicas, livros e filmes. Foi um ano de muito conhecimento construído fora da sala de aula dentro da escola.


Em 2001 o ano começou com uma surpresa de mau gosto. Estávamos todos separados, cada um numa turma diferente, com horários diferentes. Ainda tentamos negociar com a direção para ficarmos na mesma turma já que nós já erámos uma turma. Não conseguimos, ficamos abalados. Entretanto, o GACI continuou. Conhecemos Berla, que era aluna do magistério e se somou a nós contribuindo com toda sua irreverência anarquista e feminista.


Eu não gostava da sala de aula. Sempre me sentia menor do que eu fisicamente era. Os conteúdos raramente faziam sentidos. Os professores sempre muito distantes. Mas eu era obrigada passar muito tempo na escola. Engolir os conteúdos e passar de ano. Se a escola é uma merda você não pode ser pior que ela. Dizia-me meu pai que não tinha segundo grau, nem carteira assinada e nem título eleitoral. Poeta marginal, torcedor fanático do fluminense, autodidata, era um intelectual nato. Sempre lendo e escrevendo. Sempre construindo conhecimento. Meu pai, como muitos outros poetas marginais contemporâneos, procurava sua própria autonomia e liberdade e rompeu com as instituições: escola, família e trabalho.


As escolas públicas que eu frequentei me deseducaram. A falta de livros e outros materiais didáticos, as faltas de professores, as constantes aulas vagas, me deseducaram. Na verdade, a gente sempre queria as aulas vagas, pois este era o tempo que tínhamos para sonhar planejar e construir. A partir deste sistema escolar que não funcionava (e ainda não funciona), exercíamos nosso ócio criativo. A partir deste sistema escolar falho, nós utilizávamos o espaço-ambiente escolar para socializar, produzir. Seguíamos nossos desejos. As atividades do GACI eram nada mais, nada menos, pautadas nos nossos desejos e a partir destes criávamos. E assim nos educamos fora da sala de aula dentro da escola.


Em 2002 por motivos pessoais eu parti. Deixei o CRIA, deixei o GACI e deixei a rua direita do Santo Antônio Além do Carmo, nº98. Foi doloroso. Mas como me ensinou a moça de afago maternal, crescer dói, e eu cresci. Soltei a sua mão e fui enfrentar minha maioridade penal em Florianópolis.


Nesta ilha, eu terminei o segundo grau, saí de casa e fui pagar minhas contas. Equilibrei-me em uma HOMO FABER e uma HOMO SAPIENS. De dia trabalhava e a noite estudava. Trabalhei como atendente geral (faz-tudo) no Mc Donnald’s, depois na pizza hut, logo num coffee shop e até entreguei panfletos da Ford no semáforo. Conheci e entendi na pele o sistema capitalista, o que é ser explorado. Até propus aos meus colegas de trabalho do Mc Donnald’s uma greve, mas ficou só na proposta mesmo. Senti o peso de cada centavo e cada real. Para me consolar, me apropriava de um hambúrguer e uns trocados para comprar um vinho e bebê-lo a beira mar e descansava nas dunas em volta de uma fogueira.


Aos 20 anos voltei para aquela que me Salva-dor. Sem eira e nem beira e já não havia santo Antônio, fui parar na Ribeira. Quando eu cheguei, a porta estava fechada. Eu e a poeta paulista trabalhadora e séria nunca abrimos nossos cadeados uma para outra. Não restou outra solução para o poeta carioca malandro que saltou pela janela levando seus quatros filhos nos bolsos e muitos livros nas costas. E nos abriu a porta. Pagamos aluguel e eu já não era uma sem-teto. A ausência de família agora buscava encontrar toda a sua presença perdida.


Vendi meus cd’s e livros. Trabalhei temporariamente numa loja de departamento, Riachuelo. Fiz algumas transcrições de áudio. Organizei alguns arquivos. Distribui panfletos de festas psy trance. Viajei de carona da Bahia até o Rio Grande do Sul vendendo camisas com frases anarquistas até que passei no vestibular.


Minha vida quase desescolarizada


Atualmente venho pensando muito a desescolarização e consequentemente a escolarização. E a partir de minha própria trajetória me encontro às vezes entre frestas e brechas. Caminhos que foram traçados pelos meus ascendentes que me abriram estradas: bifurcadas e sinuosas. Em algum momento todos tentamos ir por uma linha reta, mas a curva é inevitável.


Eu sempre estive fora da sala de aula dentro da escola/universidade, ou seja, cometia todas as faltas permitidas. Não deixe a faculdade atrapalhar seus estudos, dizíamos nós, as Eskrotinhas. E de fato eu tinha muito que estudar, entretanto a minha bibliografia era uma, as das disciplinas eram outras. Lia o que me interessava e o resto fazia para cumprir tabela e dedicava meu tempo às atividades de meus interesses. E era dentro desta escola/universidade que eu socializava e através de grupos concretizava vários projetos que partiam de nossas necessidades, que não contentes e satisfeitos com tal ambiente-espaço-sistema de educação, buscávamos alternativas práticas para o desenvolvimento da mesma. Muitos destes grupos os quais fiz parte: diretórios acadêmicos, grupos culturais, cineclubes e etc., ocupavam e assumiam os espaços que lhes pertenciam, que lhes eram públicos, exerciam sua intelectualidade orgânica quando saiam da reflexão e partiam para práxis.


A nossa primeira educação sem dúvida é a do lar, seja ela doce ou amarga. Venho de uma família que há muitas gerações exercem a intelectualidade escolarizada, porém meus pais buscaram praticar suas intelectualidades organicamente. Pularam o muro da escola e sem diploma de segundo grau (ensino médio) foram para as ruas, praças e bares, versejarem suas mal-ditas poesias pornô-gráficas.


Foi dentro de casa que aprendi que emancipação-liberdade-autonomia significa assumir responsabilidades, “erros e culpas”. E muitas vezes resultam caro. Foi na escola/universidade que aprendi a assumir responsabilidade e a intervir naquilo que também me pertence. Foi no CRIA que aprendi através do teatro-expressão corporal-clown-comunicação, transformar o pessoal em social. E foi em 23 de novembro de 2012, quando pari Maria Alice, que percebi através daquela nova ser, a potência humana. Nós três: eu, Nuno e Maria Alice. A fantasia, a poesia e a novidade. A terra, o fogo e o ar-água. O concreto, o barro e o líquido. Juntos somos um romance. E basta um sorriso, um choro ou um silêncio para alcançar a amplitude de cada mínimo indício de vida: o devir do amor.

Maíra Castanheiro

Valle de Bravo, 26 de setembro de 2014.

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